quinta-feira, 1 de julho de 2010

Traduttore, traditore

Os cinemas provavelmente ficarão menores nas próximas semanas, diante da infinidade de fãs da série Crepúsculo que correrão às salas para assistir ao novo filme da “saga” – pois é, já batizaram de saga essa seqüência. Depois de Harry Potter, Senhor dos Anéis e Código da Vinci, o livro de Stephenie Meyer engorda a lista mais recente de obras literárias que viraram sucesso no cinema. E isso nos traz mais uma vez àquela antiga discussão sobre a adaptação de textos literários para a telona; isso sim, uma saga.

Muita gente já estudou esse assunto. Na verdade, desde que o cinema surgiu, a literatura sempre se apresentou como uma fonte inesgotável de personagens, tramas, estilos... Da mesma forma, desde que há crítica cinematográfica, há quem reflita sobre as versões de textos literários feitas para o cinema.

Entre aqueles que inicialmente voltavam seu olhar crítico para esse tipo de “reescrita”, prevalecia uma abordagem que não reconhecia a independência e as peculiaridades do cinema. Assim, durante muito tempo, a crítica observou as adaptações fílmicas como obras inferiores à “originalidade” literária.

Dois aspectos pesavam nessa análise: primeiro, a valorização do que é anterior, do original; segundo, uma certa iconofobia, uma aversão às imagens, somada à valorização da palavra e consequente erudititização da literatura. O cinema seria uma arte menor e nunca estaria à altura da arte literária. Entre o público, a visão não é muito diferente; normalmente se ouvem comentários como: “ah, o livro é bem melhor, tem mais detalhes”.

Mas vamos pensar com cuidado sobre isso. Um livro de 400 páginas, ao ser adaptado para o cinema, na maioria das vezes tem de sintetizar todos esses detalhes cuidadosamente descritos e narrados no texto literário num filme de até duas horas, no máximo. É impossível colocar tudo que tem no livro; não cabe.

Por outro lado, é importante entender que se trata de outra linguagem e, assim, de outro texto. O cinema proporciona ao leitor uma experiência estética bastante diversa daquela que ele teria ao ler o romance, num livro. Se o livro deixa abertas ao leitor diversas lacunas interpretativas, que ele preenche conforme sua perspectiva, a maior parte essas lacunas são preenchidas no filme, que, por sua vez, é um meio híbrido, que articula imagens e sons na construção de uma narrativa mais carregada de elementos estéticos.

Cada leitor, portanto, ao ler uma obra literária, produz um filme mental. Quando assistimos a um filme inspirado em texto literário, assistimos, na verdade, a um filme que inicialmente foi “idealizado” na leitura que o diretor e o roteirista, por exemplo, fizeram do mesmo texto literário. Por isso, na maioria das vezes gostamos mais do livro do que do filme; é que o “nosso” filme quase sempre é melhor do que o do outro.

E é aí que vem outra questão. O filme é uma leitura e, mais do que isso, uma recriação. Para se recriar algo, é preciso manter algo do original, mas, principalmente, transformá-lo, ampliá-lo. Uma adaptação cinematográfica de obra literária é outra obra, que nem é literária. É diferente e tem sua originalidade, senão nem chamaríamos de arte.

Mas aí vêm outros dizer que não dá para falar em originalidade hoje: “tudo já foi dito”. Se isso é verdade, não há mais nada novo a se dizer, só nos cabe mesmo tentar dizer as mesmas coisas de modo diferente. E, se redizer é uma forma de tradução, o ideal é que o cinema siga confirmando a famosa expressão italiana que diz: “traduttore, traditore”. O tradutor é um traidor. Nesse caso, que o cinema assim seja. Agora e sempre.

* Bernardo Rodrigues
Jornalista, especialista em Filosofia e
Mestre em Teoria da Literatura.
Professor dos cursos de Jornalismo e Publicidade
e Propaganda da Faculdade Pitágoras/Divinópolis

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